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Quando a linguagem distrai a IA clínica e o risco de vieses emergentes em modelos de saúde

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Em 23 de junho de 2025, uma pesquisa do MIT revelou algo intrigante e profundamente relevante para quem trabalha com saúde digital: modelos de linguagem usados para sugerir condutas médicas podem ser influenciados por elementos não clínicos, como erros de digitação, expressões coloquiais e espaçamentos irregulares, que acabam desviando suas recomendações. O estudo mostrou que esses pequenos ruídos linguísticos, aparentemente inofensivos, alteraram as respostas dos modelos, levando a um aumento de 7 a 9% nas orientações de “autogerenciamento” em situações nas quais o paciente deveria, em tese, ser direcionado a atendimento presencial.


De forma ainda mais curiosa e reveladora, o fenômeno era mais frequente em mensagens associadas a pacientes femininas, mesmo quando o gênero explícito havia sido removido. Essa diferença não decorre de fatores biológicos, mas de sutilezas linguísticas que o modelo captou sem compreender: padrões de escrita mais descritivos, expressões de dúvida ou empatia, modulações de emoção. São traços comunicativos legítimos e valiosos, que refletem a forma como muitas pessoas constroem sentido em torno da experiência de adoecer. O curioso, portanto, não é que o modelo tenha identificado o gênero, mas que tenha reagido a ecos sociolinguísticos invisíveis, sinais que, embora neutros para nós, carregam marcas culturais aprendidas. Essa descoberta nos lembra que a IA não apenas processa linguagem, mas reflete padrões sociais presentes nos dados com os quais foi treinada. E quando isso acontece de forma implícita, os vieses históricos podem ressurgir de maneira sutil, porém estrutural.


Esse resultado não significa que exista algo errado na forma como as pessoas se comunicam, mas sim que a inteligência artificial ainda não entende plenamente a riqueza da linguagem humana. O que a pesquisa do MIT evidencia é que os modelos não falham apenas por falta de dados clínicos balanceados, mas por uma limitação semântica: não saber lidar com as nuances sociais e culturais da comunicação. E isso é um ponto crítico, porque a linguagem não é ruído, ela é dado social.


As formas de falar, escrever e descrever sintomas variam conforme gênero, cultura, contexto, região e até humor. Expressões mais afetivas, o uso de diminutivos, hesitações, descrições detalhadas ou metáforas não são desvios de precisão, são estratégias humanas de tornar a experiência compreensível. Elas ampliam a empatia, constroem vínculo e traduzem a subjetividade do adoecer. O problema, portanto, não está na linguagem das pessoas, mas na falta de preparo dos modelos para lidar com essa diversidade de formas de expressão.


No Brasil, essa questão ganha contornos ainda mais complexos e fascinantes. A nossa língua é viva, múltipla e profundamente contextual. Pacientes digitam mensagens com abreviações, regionalismos, emojis, erros de digitação, expressões afetivas e até mistura de idiomas. Essa variabilidade, que reflete a pluralidade sociocultural do país, pode se tornar um desafio para modelos clínicos treinados em corpora “limpos” e homogêneos. Se a IA for sensível demais a ruídos linguísticos, corre o risco de subestimar sintomas em pessoas com menor letramento digital ou de regiões com padrões linguísticos distintos. A consequência é grave: ampliação de desigualdades no acesso à saúde, justamente o oposto do que se espera da tecnologia.


Por isso, testar e fortalecer modelos diante da diversidade linguística deve se tornar parte natural do ciclo de inovação em saúde digital. Isso envolve introduzir deliberadamente variações de linguagem, os chamados testes adversariais, para verificar se pequenas mudanças na escrita alteram a interpretação clínica. Assim, é possível identificar vulnerabilidades antes que o sistema chegue à prática real. O objetivo não é corrigir as pessoas, mas preparar as máquinas para compreender a realidade viva da comunicação humana.


Mais do que uma exigência regulatória, esse tema começa a se consolidar como uma nova dimensão da segurança e da equidade em IA clínica. Está surgindo uma percepção entre pesquisadores, hospitais e desenvolvedores: compreender a diversidade linguística é parte da ética aplicada da inovação. A robustez semântica deixa de ser uma preocupação técnica isolada e passa a ser um componente de responsabilidade social. Em vez de esperar diretrizes oficiais, o próprio ecossistema pode desenvolver métricas internas de sensibilidade linguística, avaliando o quanto pequenas variações de escrita afetam a saída do modelo. Essa prática revela maturidade, um movimento de inovação responsável que antecede a regulação.


Na prática, esse cuidado pode evoluir naturalmente para padrões compartilhados, boas práticas e auditorias colaborativas. É assim que se formam as normas mais efetivas: quando nascem da consciência coletiva e não apenas de exigências externas. Diferentemente de uma inovação regulada, a inovação responsável lidera o caminho, criando referências que depois inspiram políticas públicas e certificações.


Essa mudança de paradigma abre uma oportunidade de negócio e de posicionamento estratégico. Modelos clínicos podem ser aprimorados com camadas de pré-processamento linguístico adaptativo, sistemas capazes de normalizar ruídos e traduzir variações regionais antes que o texto chegue ao modelo principal. Esse tipo de módulo pode ser desenvolvido como um serviço autônomo, oferecendo robustez linguística a qualquer sistema de IA clínica. É um modelo híbrido: a tecnologia central permanece voltada à decisão clínica, enquanto a camada linguística garante que nenhuma forma de expressão legítima seja interpretada como erro.


Trata-se de transformar a diversidade de expressão em resiliência. Uma IA que entende o português de todas as regiões, com seus sotaques digitais, é uma IA mais segura, mais humana e mais brasileira. E esse é um diferencial competitivo poderoso: além de reduzir o risco clínico e jurídico, amplia a confiança do público e fortalece a reputação de quem a desenvolve.


Do ponto de vista econômico, o investimento em robustez linguística pode se traduzir em redução de custos associados a erros de triagem, atrasos diagnósticos e reinternações evitáveis. Do ponto de vista social, representa um avanço civilizatório: a tecnologia aprendendo a compreender as pessoas, e não apenas os dados. A inclusão linguística passa a ser parte da inclusão digital.


Para incorporar essa visão de forma estruturada, podemos imaginar um ciclo evolutivo de maturacão. Primeiro, construir um corpus linguístico real, com mensagens de pacientes de diferentes regiões e contextos, respeitando critérios éticos e de privacidade. Depois, aplicar testes adversariais em modelos existentes, observando o impacto das variações linguísticas na acurácia clínica. Em seguida, desenvolver módulos de robustez semântica capazes de normalizar essas variações de forma adaptativa. A partir daí, iniciar pilotos colaborativos entre instituições de saúde, startups e centros de pesquisa que se disponham a compartilhar resultados e métricas. Finalmente, divulgar benchmarks e APIs que permitam a outras regiões lusófonas, como Portugal, Angola e Moçambique, utilizar essa camada como base para seus próprios ecossistemas.


Essa jornada não depende de imposição externa, depende de visão. Se o setor de saúde brasileiro assumir o protagonismo nesse tema, podemos não apenas mitigar riscos, mas estabelecer um novo padrão internacional de qualidade. Nossa diversidade linguística, frequentemente vista como desafio, pode se tornar a base de um modelo de IA verdadeiramente inclusivo e exportável.


Ao final, o que essa discussão nos ensina é simples: a linguagem humana é parte essencial do dado clínico. A forma como descrevemos dor, medo ou desconforto contém informação emocional, cultural e contextual que não pode ser descartada. Modelos generativos precisam ser capazes de compreender essas camadas de sentido, e essa capacidade começa pela escuta atenta das nuances da linguagem.


Blindar a IA contra o ruído humano não significa limpar a linguagem, mas honrá-la. Significa reconhecer que cada palavra dita ou digitada carrega um traço da nossa humanidade. E se conseguirmos ensinar às máquinas a respeitar isso, estaremos não apenas construindo sistemas mais seguros, mas cultivando uma nova forma de empatia digital.


O Brasil tem tudo para liderar essa agenda. Não pela tecnologia em si, mas pela compreensão profunda de que entender a linguagem é entender o paciente. E essa talvez seja a inovação mais humana que a inteligência artificial poderá nos oferecer.


REFERÊNCIAS: MIT Schwarzman College of Computing, MIT Technology Review Insights, NEJM / MIT Media Lab, NEJM Catalyst




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