Donanemabe no Brasil: o que muda para a radiologia, os pagadores e o paciente
- Marco Bego

- 22 de set.
- 4 min de leitura
A chegada do donanemabe (Kisunla) ao Brasil, aprovado pela Anvisa em abril de 2025 e já disponível em alguns centros da rede privada, inaugura uma fase inédita no cuidado do Alzheimer. Pela primeira vez falamos de uma terapia modificadora da doença que exige confirmação etiológica, monitoramento intensivo por imagem e uma articulação complexa entre neurologia, radiologia, genética, serviços de infusão e pagadores. O medicamento ainda está fora do SUS e não foi incorporado ao Rol da ANS, o que amplia o risco de acesso desigual. Para hospitais e serviços de imagem, é o momento de desenhar a linha de cuidado, ajustar protocolos e construir modelos econômicos sustentáveis.
A aprovação foi concedida para pacientes em fase inicial de Alzheimer, com comprometimento cognitivo leve ou demência leve, desde que apresentem patologia amiloide confirmada. As evidências vêm de estudos de fase 2 e 3 que mostraram redução do declínio clínico e remoção de placas amiloides. Isso significa que não estamos diante de uma simples infusão, mas de um tratamento que depende de toda uma infraestrutura diagnóstica. O monitoramento de segurança é central: o risco de ARIA, um efeito adverso que aparece em ressonâncias magnéticas, obriga a realização de exames antes das infusões críticas. Equipes devem estar treinadas para identificar sinais neurológicos e agir rapidamente, e pacientes precisam ser bem informados sobre benefícios e limites da terapia. O resultado não é a cura, mas a desaceleração da progressão, e comunicar isso de forma clara evita expectativas irreais.
Do ponto de vista regulatório, o Brasil segue um padrão parecido com outros países que iniciaram a adoção da terapia. A Anvisa liberou o uso em abril de 2025, a CMED já definiu o preço e a comercialização começou na rede privada. Até setembro, não houve anúncio da ANS sobre cobertura obrigatória, e o SUS manteve foco na ampliação do acesso a donepezila para estágios mais avançados. Isso significa que, no curto prazo, o tratamento depende da capacidade de pagamento direto das famílias ou de negociações específicas com operadoras. Para instituições de saúde, esse contexto exige transparência e clareza na precificação de pacotes que incluam diagnóstico, infusão e monitoramento.
Para a radiologia, o impacto é direto e imediato. A ressonância magnética assume um papel central, pois é exigida antes das infusões dois, três, quatro e sete, além de em qualquer momento em que surjam sintomas suspeitos. Isso pode significar pelo menos quatro exames adicionais no primeiro semestre de tratamento por paciente, sem contar exames extras. Protocolos de alta qualidade, como SWI/T2* e FLAIR, precisam estar padronizados, e laudos devem adotar checklists específicos para ARIA. Além disso, o PET amiloide permanece como padrão para confirmar a presença da patologia, mas a oferta é limitada e cara. Em locais onde não há PET, biomarcadores no líquor e no plasma começam a ganhar espaço, embora ainda careçam de padronização de uso e de regras claras de reembolso. Nesse cenário, a integração de sistemas RIS/PACS com prontuários e centros de infusão será decisiva para garantir agilidade e segurança.
Do ponto de vista econômico, o desafio é grande. Como a tecnologia não está no Rol da ANS, a tendência é que seja oferecida por planos de alto padrão, contratos especiais ou negociações baseadas em desfechos. Bundles que incluam PET, ressonância, infusão e acompanhamento neurológico podem reduzir a incerteza dos pagadores se forem amarrados a indicadores objetivos, como tempo de diagnóstico, taxa de ARIA sintomática e adesão a protocolos de monitoramento. Para o SUS e hospitais filantrópicos, a ausência de incorporação implica focar na capacidade diagnóstica e desenhar linhas de cuidado para pacientes em estágios iniciais, além de conduzir pilotos que coletem dados locais de custo-efetividade. Já para centros privados, surge a oportunidade de criar serviços integrados que unam neuroimagem, genética e infusão em um único fluxo, algo que pode se tornar diferencial competitivo se acompanhado de contratos baseados em valor.
Os riscos também merecem destaque. O benefício clínico é modesto e heterogêneo, maior em pacientes com carga menor de tau, e a incidência de ARIA na imagem chega a quase um terço dos casos, embora nem sempre com sintomas. Isso exige comunicação cuidadosa com pacientes e famílias, explicando que a meta é ganhar tempo e preservar funcionalidade, não reverter a doença. O acesso desigual é outro risco, já que a introdução pela rede privada e em poucos centros tende a acentuar a desigualdade regional. Há ainda dilemas éticos ligados à testagem genética, já que o alelo ApoE4 aumenta o risco de ARIA, e a realização desse exame demanda aconselhamento adequado.
Olhando para os próximos meses, hospitais e redes de diagnóstico podem agir em diferentes frentes. Criar comitês multidisciplinares para aprovar protocolos de imagem e fluxos de segurança, reservar agendas específicas para ressonâncias pré-infusão, mapear capacidade de PET regional e integrar sistemas de informação são passos concretos. Também será essencial treinar equipes de enfermagem e técnicos de ressonância para reconhecer sinais de ARIA, além de desenvolver materiais educativos para pacientes e cuidadores. No campo econômico, pacotes transparentes que incluam diagnóstico, infusão e monitoramento, com cláusulas de interrupção em caso de eventos adversos ou ausência de benefício, aumentam a sustentabilidade da jornada.
No horizonte, há espaço para evolução. Ajustes nos protocolos de dosagem já vêm sendo discutidos fora do Brasil e podem reduzir o risco de ARIA. Biomarcadores de sangue como p-tau217 podem baratear a triagem e aliviar a pressão sobre o PET, encurtando a jornada diagnóstica. A inteligência artificial aplicada à ressonância pode ajudar na detecção automática de sinais precoces de ARIA, priorizando casos no PACS e aumentando a segurança. E contratos baseados em valor, sustentados por dados reais e interoperáveis com ANS e SUS, terão papel central para definir quem liderará a adoção dessa inovação.
A chegada do donanemabe é, portanto, um marco. Mais do que um novo medicamento, representa um teste para a capacidade do sistema brasileiro de integrar ciência, regulação, infraestrutura e comunicação transparente. Se esses elementos caminharem juntos, o tratamento pode deixar de ser promessa restrita a poucos para se tornar política pública estruturada. Caso contrário, corre o risco de ser lembrado apenas como mais um avanço científico inacessível. O futuro dessa terapia no Brasil depende menos da molécula e mais da coordenação do ecossistema de saúde.
Referências selecionadas: Agência Brasil (abr/2025), Estado de Minas (abr/2025), UOL VivaBem (set/2025), O Tempo/Folhapress (set/2025), Lilly (protocolos clínicos), JAMA Neurology, Reuters (contexto internacional).












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