A virada global da governança da IA em saúde: do hype às regras do jogo
- Giovanni Cerri
- 12 de nov.
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Atualizado: 17 de nov.
Giovanni Guido Cerri, MD, PhD — Professor Titular de Radiologia (FMUSP); Presidente dos Conselhos do InRad e InovaHC

O cenário internacional de inovação em saúde vive uma mudança silenciosa, porém decisiva: a consolidação de uma governança prática para a inteligência artificial no cuidado. A fase de projetos isolados e pilotos prolongados começa a dar lugar a modelos operacionais que definem como a IA se integra ao fluxo clínico, quem responde pelos resultados, como ocorre sua remuneração e quais salvaguardas asseguram segurança e rastreabilidade. Nas últimas semanas, movimentos relevantes de reguladores, sociedades médicas, consórcios e publicações científicas reforçaram essa direção, indicando que a discussão global se desloca da promessa tecnológica para a execução responsável em escala.
Nos Estados Unidos, a American Medical Association lançou um Centro de Saúde Digital e IA com o objetivo de influenciar a prática clínica e a construção do marco regulatório voltado ao uso dessas ferramentas. Paralelamente, a Coalition for Health AI avançou na padronização de boas práticas em parceria com a The Joint Commission, propondo playbooks institucionais para monitoramento, auditoria e transparência. A articulação entre prática médica organizada e governança institucional tende a criar as condições para uma adoção previsível, com responsabilidade clínica definida e alinhamento entre desfechos e operação hospitalar.
O debate político acompanha esse movimento. A tensão entre modelos de autorregulação e abordagens mais fragmentadas pelo Estado evidencia que a régua regulatória ainda está em formação, influenciando diretamente a velocidade de adoção global. Na prática, fornecedores que atuam em múltiplos mercados tendem a seguir padrões mais exigentes e transparentes, favorecendo a segurança e a comparabilidade entre instituições. Quando o padrão dominante valoriza documentação dos dados de treinamento, avaliação contínua pós-implantação e trilhas de auditoria, o resultado é um ciclo mais controlado e previsível. Quando essa régua se torna irregular, aumentam os custos de transação e a adoção desacelera.
A produção científica recente vai na mesma direção. Nature Medicine destacou a relevância da supervisão humana, da comunicação explícita de incertezas e do monitoramento contínuo após a implantação. Já editoriais na JAMA têm enfatizado validação robusta, uso em cenários reais e critérios transparentes de desempenho, mesmo sem o foco explícito no conceito de “humano no loop”. Sociedades científicas começam a consolidar guias de avaliação proporcional ao risco para IA clínica, com ênfase em monitoramento contínuo em uso real e exigências pragmáticas de vigilância pós-implantação. Esses requisitos influenciam diretamente o CAPEX e o OPEX da adoção hospitalar, pois demandam redesenho de workflow, telemetria integrada ao prontuário, mecanismos de fallback e estrutura permanente de governança. É a convergência entre TI hospitalar, qualidade assistencial e compliance.
Esse movimento global encontra correspondência no Brasil. No InRad, foi estabelecido um grupo dedicado à ciência da implementação de IA em ambientes de diagnóstico complexos, com foco em produzir evidência real e modelos reprodutíveis. A iniciativa busca criar frameworks de governança, integração clínica, avaliação contínua de impacto e testar novos modelos de negócio para o uso de IA no cuidado.
Do ponto de vista econômico, observa-se tendência clara de valorização de desempenho real. Três arranjos se destacam internacionalmente: o risk sharing associado a desfechos clínicos ou operacionais; o pagamento por caso ou por relatório, com aplicação em patologia digital e radiologia; e o PMPM ampliado para serviços digitais, especialmente quando há redução de custos administrativos, burnout ou redundâncias assistenciais. Essa evolução ainda está em consolidação e depende diretamente de telemetria e governança para se sustentar.
No campo regulatório, a transparência técnica passa a ser vista como componente essencial. Países com estratégia nacional integrada de dados avançam de maneira mais coordenada, pois conseguem alinhar infraestrutura, avaliação e auditoria. Ecossistemas fragmentados, por sua vez, exigem acordos explícitos sobre responsabilidades de monitoramento e processos de ajuste em produção. Sem isso, a IA tende a se tornar um mosaico de difícil auditoria e baixa escalabilidade.
Na prática clínica, os ganhos mais maduros estão em priorização de listas, triagem de imagens e automação de resumos e scribing, sempre com supervisão e comunicação de incerteza. A próxima fronteira envolve agentes mais autônomos em backoffice, farmácia clínica e coordenação de alta, reduzindo atritos e liberando tempo profissional, preservando salvaguardas como kill switch, logs auditáveis e indicadores de degradação.
O horizonte próximo sugere uma mudança de métrica: a disputa deixará de se concentrar em acurácia isolada e migrará para a qualidade do ciclo de vida do modelo em produção. Avançarão as instituições capazes de oferecer confiabilidade operacional, custos previsíveis e governança clara. Pagadores e reguladores tenderão a exigir indicadores comparáveis, pressionando o setor a reduzir opacidade e fortalecer integração.
Mesmo com idas e vindas no Congresso dos EUA sobre preempção regulatória de IA, prevalece a pressão por métricas comparáveis e governança operacional.
Em síntese, a saúde global transita da era do experimento para a era da infraestrutura. É nesse ambiente que a inovação se converte em produtividade, desfecho e sustentabilidade — e em que a IA passa a ser avaliada não pelo caráter tecnológico, mas pela capacidade de melhorar o cuidado de forma rastreável, auditável e responsável.
REFERÊNCIAS: STAT News, Político, Nature, Jama Network, American Heart Association, Reuters











